Em desalinho com as “trocas
simbólicas”
Deixe-se
1976 para trás e, adentre-se um pouco mais em 1977. Antes, porém, é preciso
fazer uma pequena pausa, com o fito de considerar algumas observações feitas
por leitor anônimo do último arrazoado – e se foi leitora, há que desculpar
este escrevedor, pois, a condição de anonimato não lhe permite inferir o gênero
-, nas quais algumas questões são levantadas, no sentido de provocar algumas
reflexões. Em um primeiro comentário, a pessoa anônima assevera que “[...] José
Mário é um dentre os milhares ou milhões de indivíduos sem conexão social.
Indivíduos que procuram algo, mas não sabem o que é. Ávidas de experiências.
Essas criaturas não conseguem atrair a atenção de outras para interações como
bate papo ou troca de opiniões.” O
pressuposto não está de todo equivocado. No entanto, a pessoa anônima não
considerou a possibilidade de não estar no querer do personagem, a sua condição
de “desconectado social”; embora ele não seja o único, conforme acertadamente asseverou, ele é parte de um
grupo de indivíduos que, à sua época, não conhecia os códigos sociais sob os
quais estava sendo esmagado, em sua instintiva busca de um “lugar social” para
se fazer inserir. Eram escassas ou inexistentes as ferramentas de que precisava
para manobrar adequadamente o cipoal de códigos, regras e normas sociais que, embora
consuetudinários, estava ali para ser decifrado, cumprido ou mesmo infligido. Para
tanto, era preciso que fosse conhecido e, José Mário não o conhecia; uma vez conhecido,
era preciso ser compreendido, refletido e interpretado. Para fazer tão profundo
exercício de exegese, seria preciso dispor de um ferramental intelectual, bibliográfico
e/ou hemerográfico que o ajudasse naquela
empreitada e, ele não o possuía, nem podia aceder, ainda que em bibliotecas e/ou
centros de pesquisa coletivos.
Em uma segunda
observação, quiçá a mesma pessoa levanta uma questão, própria de quem tem algum
conhecimento na área das ciências sociais, na medida em que salienta alguns elementos
que acabam por intervir na busca por inserção social de José Mário, que certamente
a pessoa anônima conhece, mas, prefere que haja respostas às suas ponderações, o
que se procederá, crê-se, em formato de um pequeno diálogo entre escrevedor e comentarista.
- “Por
que e em que medida as pessoas não enxergam José Mário?”
- Porque as
pessoas como ele são socialmente invisíveis,
conforme o classificariam muitos estudiosos de diversas áreas das
ciências humanas e sociais. O conceito de “invisibilidade social”, é entendido aqui
como sendo o fenômeno que aponta para um processo de não se perceber o outro à sua
volta, quando aquele outro destoa de alguns padrões elencados socialmente, fazendo
com que seja ignorado por todos quantos cruzem por aquele ser, nos ires e vires
de tantos quantos se entendam como parte socialmente ajustada.
- “Que
tipo de relação social ele busca no grande tecido urbano?”
- Ele só
buscava estabelecer no “grande tecido humano”, aquelas relações sociais que
seriam inerentes às pessoas da sua idade, do seu local de convivência, que,
ingenuamente, ele acreditava também estar ao seu alcance, visto que, conforme
já se disse linhas atrás, ele ignorava haver algum tipo de codificação tácita e
implícita, naquela sociedade em que vivia, que dissesse que não lhe era permitido
estar aqui, ali ou alhures, no seu espaço de interação social, cultural,
escolar ou afetiva.
Uma
terceira observação feita sobre o escrito da postagem anterior, esta mais
áspera, ácida e marcadamente psicologizante, a pessoa anônima afirma,
peremptoriamente: “Acertadamente, José Mário é uma personagem que não se
encontrou ainda no mundo. Precisa ter consciência de si mesmo antes de querer
ou exigir relacionar-se com os outros. Ele parece ser puramente ingênuo.”
Não, caro
anônimo e arguto leitor. Ele não era ingênuo. Ele vivia em um tempo em que o
conhecimento e as informações não chegavam de modo equânime. Já foi dito em outro
arrazoado, que o seu acesso aos livros, aos jornais, às revistas e à formação
escolar eram precárias e frágeis. No entanto, há que se ponderar que, ainda que
esteja correta a assertiva, não é justo que ele tenha sido lançado à própria
sorte, no seu intento de se “encontrar”, já que se assevera ter ele aquela
necessidade de o fazer, para poder querer se integrar ao tecido social que lhe era
hostil, que o invisibilizava, que sempre
o impelia para às suas margens, onde quase sempre esteve a deriva e suplantado pelos demais que se
fizer incorporar àquela tessitura estrutural do construto social.
Para uma
melhor compreensão dos pressupostos aqui apontados, é imperioso lembrar aos que
dedicam um pouco do seu tempo para ler estes garatujes, que, mesmo para aqueles
nascidos entre os fins dos anos 1950 e 1970, que possuíam um acesso menos
restrito a informações, a leituras, bem como a outros meios de apreensão do
mundo à sua volta, a tomada de decisões sobre o que fazer, o que não fazer,
sobre o quando fazer, sobre o como fazer, era um exercício duro e, não raro,
sujeito a pequenos ou grandes equívocos, algumas vezes incontornáveis, quando fosse preciso rever um
rumo a ser tomado, uma vez que eles estavam bem aquém daqueles outros, nascidos
entre os 1980 e meados da década de 1990, no que tange ao conjunto de
instrumentos, meios e capacidades de reunir uma ampla gama de informações, a
partir das quais fariam as suas escolhas, tomariam as suas decisões,
estabeleceriam – ou não -, tais ou quais relações, em tais ou quais medidas.
Isto quer dizer que, ter completado ou estar por completar dezessete anos, era
muito diferente, considerando-se todas essas fatias de tempo, de acordo com os níveis
de desenvolvimento: tecnológico, intelectual, educacional, econômico e social,
quer tenha sido da sociedade como um todo, quer tenha sido do indivíduo e/ou
dos grupos de indivíduos, em particular, que formam e/ou formatam a tessitura
social vigente e prevalente, em um tempo dado.
Talvez, alguém
pudesse objetar e, com razão, que o processo formativo de uma pessoa, não deva e
nem possa reduzir-se à sua trajetória escolar formal, quer o ensino proveniente
dela seja superficial, profundo; bancário ou reflexivo. No entanto, não se pode
perder de vista a premissa de que, as bases elementares de um tal processo formativo,
estão ou, deveriam estar lastreadas nos elementos propedêuticos infundidos no sistema
cognitivo das pessoas que estejam inseridas no processo de escolarização, a partir
do qual desenvolvem a sua caminhada rumo ao futuro. Alijar um indivíduo ou um grupo
deles desta construção estrutural, levará o tal sujeito a envidar ainda maiores
esforços para mitigar os prejuízos advindos de uma formação precária, do ponto de
vista do acúmulo dos conhecimentos distribuídos por todo o processo de escolarização,
caso ele queira ou precise se fazer catapultar a patamares mais elevados no seu processo formativo
como um todo.
No caso específico
de José Mário - além de alguns outros sujeitos
que compartilhavam com ele as condições sociais, culturais, econômicas e sensoriais
-, saliente-se de passagem que, precisou lidar com os inúmeros vácuos estruturais
e experienciais no transcurso de grande parte daquele processo, retardando a integração
dos elementos basilares que viessem a permitir a sedimentação dos fundamentos sobre
os quais ele deveria assentar o seu saber, o seu conhecer, o seu entender, o seu
compreender, o seu interpretar e, sobretudo, o seu agir diante da vida e das necessidades
por ela impostas.
Portanto, considerando todas as perspectivas acima apresentadas
em rápidas e simplificadas formulações, é em desalinho com as lógicas das “trocas
simbólicas” que José Mário se apresenta ao ano de 1977, visto que, embora percebesse
as desigualdades econômicas,, sociais e dos níveis de apreensão do conhecimento,
até por ele mesmo se relacionar diretamente
com tais diferenças e, vivenciar em seu dia a dia de moço pobre e de residência
distante do centro urbano, ele não as percebe como sendo fruto de uma construção
social injusta, lastreada no sistema capitalista de produção e distribuição, mas
sim, como algo dado em razão das diferenças oriundas dos processos formativos; dos
esforços pessoais exitosos ou fracassados no intuito de ser inserido no processo produtivo,
conforme preconizam os meritocratas. Ele não conseguia perceber que as diferenças
de local ou tipo de moradia, que as regularidade ou não das refeições, envolvendo
qualidade, variedade e quantidade; que a posse ou não de uma indumentária adequada
aos padrões vigentes; nem mesmo, que os espaços de socialização e a sua utilização,
estavam diretamente relacionados com as formas de exploração da força de trabalho
e ou, com as formas desiguais de apropriação dos bens produzidos e dos serviços
prestados pelo conjunto da sociedade e, sobretudo, na sua distribuição desigual
ou antes, na restrição ao acesso coletivo comum, senão, àquele grupo de indivíduos
que pudesse fazê-lo, mediante a compra.
Em suma: embora tudo aquilo José Mário percebesse, vivenciasse
e parcialmente o soubesse, não entendia que aquilo era um fenômeno socialmente construído
e sustentado e, que havia um conjunto de códigos que regia o tal fenômeno. Talvez
por isto, pensasse que tudo era previamente dado e, como tal, pouco propenso a reconfigurações.
Faltava a ele o conhecimento histórico.
Alagoinhas, 27 de janeiro de 2025 – Professor Jorge Damasceno.
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