segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

SEIS DIGRESSÕES SOBRE UNS TEMPOS IDOS - PARTE III

Em desalinho com as “trocas simbólicas”

 

Deixe-se 1976 para trás e, adentre-se um pouco mais em 1977. Antes, porém, é preciso fazer uma pequena pausa, com o fito de considerar algumas observações feitas por leitor anônimo do último arrazoado – e se foi leitora, há que desculpar este escrevedor, pois, a condição de anonimato não lhe permite inferir o gênero -, nas quais algumas questões são levantadas, no sentido de provocar algumas reflexões. Em um primeiro comentário, a pessoa anônima assevera que “[...] José Mário é um dentre os milhares ou milhões de indivíduos sem conexão social. Indivíduos que procuram algo, mas não sabem o que é. Ávidas de experiências. Essas criaturas não conseguem atrair a atenção de outras para interações como bate papo ou troca de opiniões.”  O pressuposto não está de todo equivocado. No entanto, a pessoa anônima não considerou a possibilidade de não estar no querer do personagem, a sua condição de “desconectado social”; embora ele não seja o único, conforme  acertadamente asseverou, ele é parte de um grupo de indivíduos que, à sua época, não conhecia os códigos sociais sob os quais estava sendo esmagado, em sua instintiva busca de um “lugar social” para se fazer inserir. Eram escassas ou inexistentes as ferramentas de que precisava para manobrar adequadamente o cipoal de códigos, regras e normas sociais que, embora consuetudinários, estava ali para ser decifrado, cumprido ou mesmo infligido. Para tanto, era preciso que fosse conhecido e, José Mário não o conhecia; uma vez conhecido, era preciso ser compreendido, refletido e interpretado. Para fazer tão profundo exercício de exegese, seria preciso dispor de um ferramental intelectual, bibliográfico e/ou hemerográfico  que o ajudasse naquela empreitada e, ele não o possuía, nem podia aceder, ainda que em bibliotecas e/ou centros de pesquisa coletivos.

Em uma segunda observação, quiçá a mesma pessoa levanta uma questão, própria de quem tem algum conhecimento na área das ciências sociais, na medida em que salienta alguns elementos que acabam por intervir na busca por inserção social de José Mário, que certamente a pessoa anônima conhece, mas, prefere que haja respostas às suas ponderações, o que se procederá, crê-se, em formato de um pequeno diálogo entre escrevedor e comentarista.

- “Por que e em que medida as pessoas não enxergam José Mário?”

- Porque as pessoas como ele são socialmente invisíveis,  conforme o classificariam muitos estudiosos de diversas áreas das ciências humanas e sociais. O conceito de “invisibilidade social”, é entendido aqui como sendo o fenômeno que aponta para um processo de não se perceber o outro à sua volta, quando aquele outro destoa de alguns padrões elencados socialmente, fazendo com que seja ignorado por todos quantos cruzem por aquele ser, nos ires e vires de tantos quantos se entendam como parte socialmente ajustada.

- “Que tipo de relação social ele busca no grande tecido urbano?”

- Ele só buscava estabelecer no “grande tecido humano”, aquelas relações sociais que seriam inerentes às pessoas da sua idade, do seu local de convivência, que, ingenuamente, ele acreditava também estar ao seu alcance, visto que, conforme já se disse linhas atrás, ele ignorava haver algum tipo de codificação tácita e implícita, naquela sociedade em que vivia, que dissesse que não lhe era permitido estar aqui, ali ou alhures, no seu espaço de interação social, cultural, escolar ou afetiva.

Uma terceira observação feita sobre o escrito da postagem anterior, esta mais áspera, ácida e marcadamente psicologizante, a pessoa anônima afirma, peremptoriamente: “Acertadamente, José Mário é uma personagem que não se encontrou ainda no mundo. Precisa ter consciência de si mesmo antes de querer ou exigir relacionar-se com os outros. Ele parece ser puramente ingênuo.”

Não, caro anônimo e arguto leitor. Ele não era ingênuo. Ele vivia em um tempo em que o conhecimento e as informações não chegavam de modo equânime. Já foi dito em outro arrazoado, que o seu acesso aos livros, aos jornais, às revistas e à formação escolar eram precárias e frágeis. No entanto, há que se ponderar que, ainda que esteja correta a assertiva, não é justo que ele tenha sido lançado à própria sorte, no seu intento de se “encontrar”, já que se assevera ter ele aquela necessidade de o fazer, para poder querer se integrar ao tecido social que lhe era hostil, que o  invisibilizava, que sempre o impelia para às suas margens, onde quase sempre esteve  a deriva e suplantado pelos demais que se fizer incorporar àquela tessitura estrutural do construto social.

Para uma melhor compreensão dos pressupostos aqui apontados, é imperioso lembrar aos que dedicam um pouco do seu tempo para ler estes garatujes, que, mesmo para aqueles nascidos entre os fins dos anos 1950 e 1970, que possuíam um acesso menos restrito a informações, a leituras, bem como a outros meios de apreensão do mundo à sua volta, a tomada de decisões sobre o que fazer, o que não fazer, sobre o quando fazer, sobre o como fazer, era um exercício duro e, não raro, sujeito a pequenos ou grandes equívocos, algumas vezes  incontornáveis, quando fosse preciso rever um rumo a ser tomado, uma vez que eles estavam bem aquém daqueles outros, nascidos entre os 1980 e meados da década de 1990, no que tange ao conjunto de instrumentos, meios e capacidades de reunir uma ampla gama de informações, a partir das quais fariam as suas escolhas, tomariam as suas decisões, estabeleceriam – ou não -, tais ou quais relações, em tais ou quais medidas. Isto quer dizer que, ter completado ou estar por completar dezessete anos, era muito diferente, considerando-se todas essas fatias de tempo, de acordo com os níveis de desenvolvimento: tecnológico, intelectual, educacional, econômico e social, quer tenha sido da sociedade como um todo, quer tenha sido do indivíduo e/ou dos grupos de indivíduos, em particular, que formam e/ou formatam a tessitura social vigente e prevalente, em um tempo dado.

Talvez, alguém pudesse objetar e, com razão, que o processo formativo de uma pessoa, não deva e nem possa reduzir-se à sua trajetória escolar formal, quer o ensino proveniente dela seja superficial, profundo; bancário ou reflexivo. No entanto, não se pode perder de vista a premissa de que, as bases elementares de um tal processo formativo, estão ou, deveriam estar lastreadas nos elementos propedêuticos infundidos no sistema cognitivo das pessoas que estejam inseridas no processo de escolarização, a partir do qual desenvolvem a sua caminhada rumo ao futuro. Alijar um indivíduo ou um grupo deles desta construção estrutural, levará o tal sujeito a envidar ainda maiores esforços para mitigar os prejuízos advindos de uma formação precária, do ponto de vista do acúmulo dos conhecimentos distribuídos por todo o processo de escolarização, caso ele queira ou precise se fazer catapultar  a patamares mais elevados no seu processo formativo como um todo.

No caso específico de José Mário  - além de alguns outros sujeitos que compartilhavam com ele as condições sociais, culturais, econômicas e sensoriais -, saliente-se de passagem que, precisou lidar com os inúmeros vácuos estruturais e experienciais no transcurso de grande parte daquele processo, retardando a integração dos elementos basilares que viessem a permitir a sedimentação dos fundamentos sobre os quais ele deveria assentar o seu saber, o seu conhecer, o seu entender, o seu compreender, o seu interpretar e, sobretudo, o seu agir diante da vida e das necessidades por ela impostas.

Portanto, considerando todas as perspectivas acima apresentadas em rápidas e simplificadas formulações, é em desalinho com as lógicas das “trocas simbólicas” que José Mário se apresenta ao ano de 1977, visto que, embora percebesse as desigualdades econômicas,, sociais e dos níveis de apreensão do conhecimento, até  por ele mesmo se relacionar diretamente com tais diferenças e, vivenciar em seu dia a dia de moço pobre e de residência distante do centro urbano, ele não as percebe como sendo fruto de uma construção social injusta, lastreada no sistema capitalista de produção e distribuição, mas sim, como algo dado em razão das diferenças oriundas dos processos formativos; dos esforços pessoais exitosos ou fracassados no  intuito de ser inserido no processo produtivo, conforme preconizam os meritocratas. Ele não conseguia perceber que as diferenças de local ou tipo de moradia, que as regularidade ou não das refeições, envolvendo qualidade, variedade e quantidade; que a posse ou não de uma indumentária adequada aos padrões vigentes; nem mesmo, que os espaços de socialização e a sua utilização, estavam diretamente relacionados com as formas de exploração da força de trabalho e ou, com as formas desiguais de apropriação dos bens produzidos e dos serviços prestados pelo conjunto da sociedade e, sobretudo, na sua distribuição desigual ou antes, na restrição ao acesso coletivo comum, senão, àquele grupo de indivíduos que pudesse fazê-lo, mediante a compra.

Em suma: embora tudo aquilo José Mário percebesse, vivenciasse e parcialmente o soubesse, não entendia que aquilo era um fenômeno socialmente construído e sustentado e, que havia um conjunto de códigos que regia o tal fenômeno. Talvez por isto, pensasse que tudo era previamente dado e, como tal, pouco propenso a reconfigurações. Faltava a ele o conhecimento histórico.

 

Alagoinhas, 27 de janeiro de 2025 – Professor Jorge Damasceno.

 

 - historiadorbaiano@gmail.com 

domingo, 19 de janeiro de 2025

Seis digressões sobre uns tempos idos Parte II

Ele estava só, mesmo em meio à multidão.

 

Conforme aludido na digressão anterior, José Mário, embora houvesse estado em todo o transcurso daquela sessão da câmara que impossara os seus treze edis, bem como o prfeito e vice-prefeito para o exercício de 1977 a 1981, depois ampliado até 1983, dali saíra, do mesmo modo como entrara: anônimo e invisível em relação a grande parte daquela gente que também ali estivera. Do mesmo modo, este escrevente também afirmara não ter conseguido atinar, sobre o que tivera levado José Mário a comparecer a dita reunião, visto não ser ele iniciado nas lides políticas locais; não dispor de credenciais sociais ou econômicas para estar ali; não fazer parte de quaisquer grupos inseridos no azáfama político da cidade, que quase sempre se encontravam nos poucos bares e restaurantes existentes àquela época, lugares por excelência das confabulações e das construções de compromissos, essencialmente estruturadas em torno e em favor das elites sociais dirigentes do município.

Concluída a cerimônia e realizados os cumprimentos de prache, a talvez centena de pessoas que ali se glutinara, rapidamente se dispersara, cada uma ou cada grupo delas, se dirigindo a outras festas, comemorações e/ou, como fora o caso de José Mário que, talvez houvesse circulado ali pelo entorno do prédio onde estavam instalados o gabinete do prefeito, que fazia as vezes de porta central, a câmara municipal, de onde acabavam de sair e o fórum da cidade.  Eles, talvez, tentassem encontrar algum conhecido ou mesmo, alguém, ainda que não conhecido, com quem pudesse vir a trocar algumas ideias, sendo alguns bem sucedidos naquela busca de dividir as impressões daquilo que presenciaram alguns minutos antes. Não ocorrendo o mesmo com aquele que ali se encontrava como se fora um forasteiro em seu próprio lugar de nascimento, fez com que ele se dirigisse à residência de algum parente ou, provavelmente, regressado à sua própria, com uma sensação de grande vazio, na medida em que, estivera agrupado em torno de mais ou menos uma centena de pessoas e, logo, logo, estaria absolutamente só, sem ter com quem dividir uma impressão que fosse, a respeito de tudo que houvera presenciado junto a toda àquela gente.

No entanto, não foi aquele o primeiro momento de sua vida em que aquele sentimento de solidão em meio à multidão, se lhe apresentou ao espírito. Alguns dias antes, por ocasião da celebração do Natal de 1976, ele até que tentou ir à Missa do Galo, como todos ou quase todos, foram. Ele acreditara estar vestido e calçado adequadamente para a ocasião, se perfumara e saíra, tomando a direção do centro da cidade, onde se localizava a Igreja Matriz e, igualmente, estava localizado o Parque de diversões, bem como as barracas onde comidas e bebidas eram vendidas, àqueles que dispusessem dos recursos monetários para a sua aquisição. O leitor deste arrazoado pode tranquilamente rir e caçoar de quem o escreve, considerando óbvia, a observação acima. No entanto, considere o impaciente leitor de agora, que, evidentemente José Mário sabia perfeitamente que, precisaria possuir recursos monetários para ter o direito de provar alguma daquelas iguarias. O que ele talvez não atinasse, quando faltavam três dias para ele  completar dezesseis dezembros, é que ali estava uma divisão social da religiosidade, formatada pelo ter ou não ter os meios para adquirir os bens produzidos pela sociedade. Tratava-se de uma festa religiosa; tratava-se de uma manifestação “Cristã”. Porém, nela, estava embutida a contradição a partir da qual, uns seriam mais “cristãos” do que outros; ali, ficava estampada a face perversa da pobreza – ou uma dentre elas -, em que, a despeito de estar se comemorando o “Natal” de Cristo, nem todos poderiam desfrutar de tudo aquilo que ali estava posto, como sendo parte daquela comemoração. Em suma: era preciso dispor de recursos monetários para ter participação plena naquelas comemorações, pretensamente cristãs. O “ganhar” ou o “dar” presentes, é uma das facetas de uma tão flagrante perversidade.

Mas, retome-se o caso da “Missa” do galo – que não é nem se remete ao conto de Machado de Assis. José Mário, vestido e perfumado, saíra da sua moradia modesta, decidido a participar ativamente daquela celebração que acreditava ser franqueada a tantos quantos dela quisesse, indistintamente, quer do ponto de vista social, quer do ponto divista econômico. Afinal, pensava, não se paga para entrar na Igreja e, nela, rezar, comungar, celebrar... Não sabia o neófito, que a missa do galo era uma prerrogativa da Igreja Matriz. Por isto, ele fora mais cedo a uma igreja que era situada perto do seu lugar de morada e, lá, fora informado que a celebração pela qual estava interessado, só seria realizada no centro da cidade, para onde ele acabara se dirigindo mais tarde.

Tendo enfim chegado ao recinto religioso, ele se imiscuíra ali, quase aos empurrões, dado ao espaço que acabara por se tornar exíguo, diante do afluxo de fiéis. Espremido e oprimido pelos demais que se acotovelavam a procura de lugar onde assentar-se, acabou por ficar em um lugar desconfortável, de onde sequer pudera ouvir a dita missa, por conta do enorme barulho que chegava, oriundo dos brinquedos oferecidos pelo Parque de diversões instalado ao largo da Igreja e no seu entorno, o que dificultava e, para dizer bem a verdade, impedia, aqueles que não tivessem conseguido assento mais à frente, acompanhar o desenrolar do ofício religioso ali produzido. Isto é: ali estivera; ali, fora cercado por um bom número de pessoas. No entanto, de nada adiantara ter estado ali; nada aproveitara: nem mesmo a companhia daqueles que estavam ali com ele, no mesmo espaço, com o mesmo objetivo e, quiçá, vivenciando a mesma frustração que ele estava vivenciando, naquele tempo e lugar. Não se poderia estar posto ali, mais um feixe de contradições? A resposta, deixa-se para a reflexão de quantos venha a ler este tratado.

Depois de circular um pouco entre a multidão que ocupava o espaço externo à Igreja, multidão que conversava, bebia, ria, desfrutava dos folguedos e das atrações oferecidas pelo Parque de diversões, José Mário tomou o caminho de volta para o seu lugar de residência e, ao longo do trajeto, observava que, a cada passo que dava, ele se distanciava do burburinho das pessoas aglomeradas nos espaços que ele acabava de deixar para trás e dos rumores da “Festa Magna da cristandade”, o que lhe fazia sentir que, mesmoquando estava ali, ele estava só; sem qualquer tipo de companhia, ainda que fosse para conversas banais. E, cada vez mais perto de chegar em sua casa, em uma rua apertada, empoeirada, sem qualquer tipo de tratamento urbano, teve a sensação de que, não teria feito qualquer diferença, se ele houvesse permanecido em casa, deitado em sua cama patente, dormindo profundamente. Quiçá, poderia ter pensado, tivesse sido até melhor não ter saído para ir tentar assistir a “Missa do Galo”; ao menos, não saberia que era só “mais um na multidão”, tanto dos fiéis, quanto dos que se divertiam no largo e no entorno da Matriz.

 

Professor José Jorge Andrade Damasceno – Alagoinhas, 20 de Janeiro de 2025 – historiadorbaiano@gmail.com 

domingo, 12 de janeiro de 2025

Seis digressões sobre uns tempos idos – Parte I

Saiu tão anônimo quanto entrou. Naquele sábado, primeiro de janeiro de 1977, a Câmara municipal de Alagoinhas daria posse ao seu novo prefeito, eleito em 15 de novembro de 1976, o ex-vereador, comerciante de carnes e pecuarista da região, Miguel Santos Fontes, bem como o vice-prefeito Jeferson Vilanova. Antes, tomara posse a nova composição da Casa legislativa, formada por treze edis, que foram para a legislatura 1977-1983: José Ribeiro Libório (ARENA, João Cardoso da Cruz (ARENA), Nilton da Cruz Esteves (ARENA), José de Deus Oliveira (ARENA), Newton Andrade Pimentel Sampaio (ARENA), Antôn io Edson da Silva Costa (ARENA), Walter Altamirano Robatto Campos (ARENA), Jamim Nascimento Silva (ARENA), Hostilio Ubaldo Ribeiro Dias (ARENA), João Bosco de Farias Lins (MDB), Josaphat Paulino dos Santos (MDB), José Antônio dos Santos (MDB) e Genário Carvalho Damião (MDB). Para prestigiar o evento político mais importante de uma cidade, ali estaria reunida, além de uma grande assistência formada por populares de várias matizes políticas, econômicas, sociais e culturais, enfim, curiosos diversos, sem quaisquer distinções de cor, classe ou credo, além de autoridades civis, militares e eclesiásticas. Ainda bem cedo, José Mário levantara – talvez sequer tenha dormido -, tomara o seu café frugal e saíra para também tomar parte naquela efeméride, embora houvesse acabado de completar dezesseis anos, o que ainda não lhe conferia a faculdade de votar, logo, ainda não sendo considerado “cidadão”. Mas, indiferente a isto, lá fora ele para o centro da cidade, a fim de incorporar-se entre aqueles que se espremiam no espaço exíguo do prédio onde estava instalada a Câmara, aguardando, principalmente, os discursos que certamente seriam proferidos pelas autoridades e, sobretudo, pelos vereadores que ali seriam investidos da condição de legisladores municipais. Acreditando estar vestido com o que possuía de melhor em sua pouca variedade indumentária, talvez tenha sido olhado com desdém por uns, com desprezo por outros e, até mesmo com compaixão por outros tantos e, quiçá, considerado um palhaço por mais alguns poucos... De certo mesmo é que, José Mário estava ali, em meio ao grupo formado pelos curiosos que se acotovelavam naquele pequeno espaço onde funcionava a Câmara Municipal, com o fito de assistir àquela cerimônia que, para eles, se lhes afigurava como um espetáculo, como uma distração a ser prestigiada, em uma cidade ainda pequena e pacata como o era Alagoinhas, no que tange ao campo da diversão e/ou das novidades políticas e sociais. Mesmo já tendo transcorrido quarenta e oito anos desde aqueles eventos, até a digressão ora em curso, este escrevedor não é capaz de atinar o que motivara aquele rapaz, mal entrado na adolescência e já bastante atrasado no seu processsso de escolarização, a se interessar pelas disputas políticas locais, saliente-se, desde a campanha eleitoral, ocorrida meses antes, visto ter ele estado em diversos comícios, sobretudo aqueles realizados mais ao alcance de si, embora, sem demonstrar entusiasmo por qualquer um dos quatro candidatos que se apresentaram para a disputa eleitoral: Marco Antunes (MDB), Filadelpho Neto, Miguel Santos Fontes e Solon Barros, estes últimos, candidatos pela Arena – sob o instituto da sublegenda, razão pela qual, aliás, foi possível a vitória de um dos arenistas, por meio da soma da votação recebida pelos três, sufragando o mais votado dentre eles. Convem salientar que, para o eleitor mediano, aquilo não fazia o menor sentido, uma vez que, para aquele, o vitorioso deveria ter sido o candidato do MDB, que obtivera uma votação superior a aquela obtida pelo arenista que fora considerado o eleito. A dificuldade que este escrevedor possui em entender o que teria levado José Mário a se dirigir até o centro da cidade naquele dia Primeiro do ano, está no fato de que, aquele moço curioso que se imiscuíra na assistência daquela importante cerimônia político-administrativa, não possuía conhecimento e/ou consciência histórica; não possuía maturidade pessoal e/ou intelectual para fundamentar quaisquer preferências políticas – partidárias ou eleitorais -; sequer sabia ao certo de que se tratava, quando ouvia expressões como “ditadura militar”, “golpe militar”; sua formação histórica era precaríssima, visto que, além de não contar com acesso a leituras profundas sobre praticamente nada, era aluno de escola pública, forjado no mundo dos “Estudos sociais”, instruído por professores conservadores – ou vigiados, não sabia -, sequer lera ou ouvira sobre a existência de uma “repressão”, nem que vivia, estudava e caminhava, sob a vigência de um “Ato Institucional”, pois, a imprensa, em geral, o omitia; ou, quem sabe, talvez até falasse; mas ele, ele de nada quisesse saber, ou com nada daquilo se importasse, posto que, aquilo não dissesse respeito a ele, visto que, ele não era “subversivo”. Afinal de contas, aqueles seus professores apenas falavam de valores “Pátrios”, dos “símbolos Nacionais”, de datas, acontecimentos e pessoas “importantes”, que o fizera aceitar, abraçar e incorporar ao seu “construto histórico”, como sendo o “real” eo fizera absorver como factível, uma “História oficial”, que exaltava os feitos da “Revolução” e os “avanços” econômicos, políticos, tecnológicos e educacionais, promovidos pela sua implantação em 1964 e, pelos seus desdobramentos posteriores. Se há “uma repressão”, talvez dissessem, era sob os enquadramentos legais e, sobre aqueles que se opunham ao regime e se levantam contra a sua investida contra a corrupção e a subversão dos seus detratores. E em tudo isto, aquele moço acreditava, embora não fosse um entusiasta, saliente-se. Dir-se-ia qe José Mário possuía um elevado grau de dificuldade para ir além da superfície da compreensão de texto, pois, apesar de ler algumas das excelentes matérias publicadas pela revista Realidade – aquelas transcritas na revista Relevo (em Braille) -, não conseguia ir muito além do “significado das palavras”. A profundidade daquelas matérias era quase que impenetrável para ele. A sua formação escolar era quase sem livros, pois eles lhes eram inacessíveis, sobretudo, em transcrição Braille, embora a sua formação literária fosse mais ampla, pela mesma razão inversa, isto é, havia uma produção e uma distribuição de livros em Braille, que abrangia as diversas criações literárias, sobretudo, aquelas do século XIX. Malgrado o acesso a um largo número de obras e autores e, a voracidade com que ele percorria as páginas e as partes em que eram divididos os livros em Braille que lhe caíam nas mãos, aquela leitura era superficial, mecânica, emotiva e, quase sempre, acrítica, pouco ou nada reflexiva, o que significava não alcançar o objetivo esperado pelo contato com tão vasta e diversificada gama de autores e o seu modo de pensar, no que tange à construção de uma percepção e à uma leitura do mundo que o cercava. Em suma, José Mário, que naquele ano de 1977 entraria na sétima série do primeiro grau e completaria dezessete anos ao se findar mais aquele ciclo de trezentos e sessenta e cinco dias, embora fosse um leitor voraz, não conseguia ultrapassar a barreira da compreensão dos signos e das palavras, para aceder àquilo que se poderia chamar de interpretação além das letras e dos vocábulos por elas formadas. No seu processo formativo escolar e/ou literário, não foram incorporadas as ferramentas indispensáveis para desenvolver a capacidade crítica que lhe era inerente, mas, sem os instrumentos que lhe permitissem o seu exercício, no que tange à reconheceras diversas percepções de mundo que se lhe apresentavam, com o fito de poder, ele mesmo e de per si, fazer a sua própria leitura e apreender o mundo a sua volta,, alcançando a capacidade de o compreender. No entanto, a despeito de não dispor de tais ferramentas; apesar de pouco ou nada compreender daquilo que se passava naquele acanhado espaço do legislativo local, ali, ele permaneceu durante todo o transcorrer da cerimônia e dos seus desdobramentos. Porém, José Mário saiu dali, tão anônimo quanto entrou. Ninguém o chamou para um dedo de prosa; ninguém o inquiriu, sequer, o que fazia ali, visto não ser parente, nem mesmo conhecido dos empossados; não pertencia ao seleto contingente dos eleitores; não era ligado a qualquer movimento social; não tinha acento nas rodas de frequentadores dos bares e dos restaurantes da cidade. Não se deparou com qualquer dos seus colegas da já concluída sexta série... O que ele fazia então ali? O que queria ele ali? No que pensava poder obter, estando ali? Saliente-se de passagem que, embora ele se encontrasse no meio de um número considerável de pessoas, era como se José Mário Estivesse só; apesar de se ter apresentado para cumprimentar as autoridades que ali foram investidas em seus cargos, o fizera apenas conforme acreditava ser o modo correto de proceder. Era, portanto, só “mais um na multidão”. Talvez tenha sido por isto, que não tenha havido ninguém que lhe fizesse quaisquer daqueles questionamentos, ao menos, dirigindo-se a ele. Mas, certamente, aquelas indagações poderiam ter perpassado os cérebros daqueles que, eventualmente, o tivessem percebido imiscuído naquela plateia tão diversa, reunida naquele recinto onde se tomariam as decisões políticas mais relevantes para a cidade. Alagoinhas - 12 de janeiro de 2025 Professor José Jorge Andrade Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com